sexta-feira, dezembro 14, 2007

Céu em desespero


Heitor dirigia a esmo, sem rumo, errante. Tudo igual, nada de novo, tudo velho, nada de diferente. As ruas as mesmas, mas a visão embaçada pela alma doída as deixavam ainda mais melancólicas e opacas. Sexta-feira, começo de noite, toda a gente entusiasmada com a liberdade condicional do final de semana. Cidade industrial é isso: previsibilidade. Sentia ódio daquilo tudo? Não, pelo contrário, tudo o que mais queria era poder participar da “cervejada” no bar da esquina, comendo churrasquinho e debatendo, dissecando, revivendo, testemunhando todas as desventuras semanais que a vida na fábrica impõe aos seus detentos. Sim, preferia esse exercício de masoquismo a estar em sua condição de momento. A brincadeira da criança no carro da frente potencializava seu sofrimento... Enquanto o pai impaciente parecia repreender o filho por sua travessa inocência no banco traseiro, sentia um misto de nostalgia e angústia, afinal, agora já não tinha certeza se conseguiria cumprir sua função biológica nesta existência, uma disfunção genética a evitar sua participação na perpetuação da espécie.
É preciso ser forte, ponderava, tinha que se adaptar, organizar as idéias, era só nisso que queria pensar, mas pensamento tem vida própria, e o propósito de sua existência é desorganizar. Na verdade estava cansado de ser forte, queria fraquejar, cair sem culpa, desabar em pranto, e o quanto ainda desabaria fortalecê-lo-ia. Mas agora só se fazia lembrar da médica boçal e seu diagnóstico: -não queria dizer isso, mas... infelizmente é uma massa...; -Massa? Como assim?; Por quê aquela falta de coragem para encará-lo? Por quê tirar os óculos e abaixar a cabeça daquela maneira grave? Por quê o tom pesaroso? Por quê não tratar aquilo - massa, tumor, seja o que for- com naturalidade?? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê com ele afinal??
Percebia agora que pouco se conhecia, na verdade, conhecemos mais sobre o mundo físico que nos cerca do que sobre nós mesmos. Na distância que separa a retórica da ação existem mais variáveis do que sonha nosso incipiente autoconhecimento. Sabia que não havia a menor razão de ser auto-piedoso e fatalista, mas a constatação da fragilidade da condição humana o empurrava para esse precipício comportamental. O homem seguro e racional que era de sua habitual característica via-se agora como persona non grata na sombra de sua projeção.
Paradoxalmente, completamente alheia à sua tormenta espiritual, a primavera produzira um dia calmo, lindo, exuberante, e seu crepúsculo exibia um céu pintado de laranja e roxo, evocando um desejo obsessivo de vida. Ouvindo o canto final da passarada, observando a agitação alegre nas ruas e mirando o horizonte, pensou em voz alta parte de um poema recém descoberto:

”na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós"*


*Parte de poema de Ferreira Gullar escrito quando da morte de Clarice Lispector

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