sábado, dezembro 29, 2007

A culpa é do Fidel!



"Se os comunistas têm razão, então eu sou o louco mais solitário em vida. Se eles estão errados, então não há esperança para o mundo."



Jean-Paul Sartre







Esse é um daqueles filmes que lamenta-se quando chega ao fim e que transforma a experiência de ir ao cinema em algo mágico, transcendendo o tempo de permanência na sala de exibição. Alguns diriam que superestimo a obra de estréia da filha de Costa Gravas, Julie, que a exemplo do pai realiza uma película de vertente política, porém com um bom humor e ternura contagiantes, obviamente, algo que só poderia ser fruto do universo feminino.
Dizer que trata-se de uma criação auto-biográfica seria redundante, afinal, qualquer objeto de arte carrega o dna cultural de seu criador, não obstante, é patente que Julie Gravas identificou traços de sua própria infância no livro italiano Tutta Colpa di Fidel, de Domitilla Calamai, no qual o filme é baseado.
A inocência infantil é a chave do êxito intelectual do filme. A protagonista Anna (a excelente Nina Kervel-Bey) de 9 anos, se depara com uma abrupta alteração em sua rotina de vida e quer entender todos os motivos que levaram seus pais ao engajamento da luta política no início dos anos 70. O irmão de Anna, o pequeno François (Benjamin Feuillet), "rouba" algumas cenas e tem uma atuação digna de um prêmio de melhor ator coadjuvante. Completam o núcleo da Familia De La Mesa, o pai espanhol Fernando (Stefano Accorsi), e a mãe Marie(Julie Depardieu, filha de Gerard)
Com muita leveza e um competentíssimo encadeamento, o enredo discorre sobre feminismo e aborto, religião, imigração, maio de 68, ditadura franquista, Vietnã, ascensão e queda de Salvador Allende, de uma maneira livre, não-panfletária e sem nenhum traço maniqueísta. Ironiza sim o sectarismo que permeava o idealismo comunista, como a proibição imposta a Anna em ler Mickey Mouse, um suposto ícone do imperialismo estado-unidense, mas em contra-partida exalta o desabrochar da tolerância e espírito cívico que a convivência com os "camaradas" provocam nas crianças. Emocionante sem ser piegas.
Saindo da sessão ouvi comentários do tipo: "Leve, gostoso, bem Sessão da Tarde".... Para mim um dos melhores filmes do ano, grata surpresa que deve ser assitido em qualquer período do dia. Puro e genuíno entretenimento!


sexta-feira, dezembro 14, 2007

Céu em desespero


Heitor dirigia a esmo, sem rumo, errante. Tudo igual, nada de novo, tudo velho, nada de diferente. As ruas as mesmas, mas a visão embaçada pela alma doída as deixavam ainda mais melancólicas e opacas. Sexta-feira, começo de noite, toda a gente entusiasmada com a liberdade condicional do final de semana. Cidade industrial é isso: previsibilidade. Sentia ódio daquilo tudo? Não, pelo contrário, tudo o que mais queria era poder participar da “cervejada” no bar da esquina, comendo churrasquinho e debatendo, dissecando, revivendo, testemunhando todas as desventuras semanais que a vida na fábrica impõe aos seus detentos. Sim, preferia esse exercício de masoquismo a estar em sua condição de momento. A brincadeira da criança no carro da frente potencializava seu sofrimento... Enquanto o pai impaciente parecia repreender o filho por sua travessa inocência no banco traseiro, sentia um misto de nostalgia e angústia, afinal, agora já não tinha certeza se conseguiria cumprir sua função biológica nesta existência, uma disfunção genética a evitar sua participação na perpetuação da espécie.
É preciso ser forte, ponderava, tinha que se adaptar, organizar as idéias, era só nisso que queria pensar, mas pensamento tem vida própria, e o propósito de sua existência é desorganizar. Na verdade estava cansado de ser forte, queria fraquejar, cair sem culpa, desabar em pranto, e o quanto ainda desabaria fortalecê-lo-ia. Mas agora só se fazia lembrar da médica boçal e seu diagnóstico: -não queria dizer isso, mas... infelizmente é uma massa...; -Massa? Como assim?; Por quê aquela falta de coragem para encará-lo? Por quê tirar os óculos e abaixar a cabeça daquela maneira grave? Por quê o tom pesaroso? Por quê não tratar aquilo - massa, tumor, seja o que for- com naturalidade?? Por quê? Por quê? Por quê? Por quê com ele afinal??
Percebia agora que pouco se conhecia, na verdade, conhecemos mais sobre o mundo físico que nos cerca do que sobre nós mesmos. Na distância que separa a retórica da ação existem mais variáveis do que sonha nosso incipiente autoconhecimento. Sabia que não havia a menor razão de ser auto-piedoso e fatalista, mas a constatação da fragilidade da condição humana o empurrava para esse precipício comportamental. O homem seguro e racional que era de sua habitual característica via-se agora como persona non grata na sombra de sua projeção.
Paradoxalmente, completamente alheia à sua tormenta espiritual, a primavera produzira um dia calmo, lindo, exuberante, e seu crepúsculo exibia um céu pintado de laranja e roxo, evocando um desejo obsessivo de vida. Ouvindo o canto final da passarada, observando a agitação alegre nas ruas e mirando o horizonte, pensou em voz alta parte de um poema recém descoberto:

”na direção de Botafogo
as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós"*


*Parte de poema de Ferreira Gullar escrito quando da morte de Clarice Lispector

quarta-feira, outubro 24, 2007

Pessoa's

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

(Fernando Pessoa)